Transition, 2013

Valeska Schulz e Rui Aleixo * Nur als Schmetterling | Só como uma borboleta
Kunsthause, Hamburgo * Maio MMXIII

(fotografias de Valeska Schulz)


Transition é um projecto artístico cuja essência reflecte uma encruzilhada de culturas e influências, funcionando como uma refracção de uma única história em múltiplas abordagens ou formas de a contar. A pluralidade dos seus intérpretes e intervenientes – incluindo o público receptor – e a multidisciplinaridade envolvida fazem de Transition um objecto polifacetado que se abre a uma tridimensionalidade como uma “escultura” narrativa. Apresentado na Kunsthaus em Hamburgo – cidade que, por ser portuária, é uma porta entre a Europa e o resto do mundo –, no contexto de uma programação cultural que pretende incluir as dimensões espirituais do ser humano nas reflexões da Arte, este projecto surgiu naturalmente como um “diálogo”.
A lenda de Zhu Yingtai e Liang Shanbo é o mote para Transition, uma espécie de Romeu e Julieta da Antiga China, onde se narra a história de amor entre dois jovens que não é recebida pela sociedade e que só se realiza plenamente com a trágica morte dos amantes. Transition funciona como um elo na cadeia de transmissão desta história e articula-se, como um tríptico, em três “retábulos” ou “tempos” que coexistem temporalmente e espacialmente em cada apresentação do projecto:

1) Num primeiro “tempo” a lenda é traduzida em matéria visual por Valeska Schulz – três vídeos de curta duração são projectados simultaneamente numa estrutura/pavilhão pentagonal composta por várias telas suspensas. Durante a “apresentação” do projecto – performance – aparecem novos elementos que complexificam este “retábulo”: as sombras do público e dos restantes intervenientes no processo sobrepõem-se às imagens projectadas, dialogando plasticamente com estas.
Aus den Kugeln (frame do video de Valeska Schulz)
Alle Farben (frame do video de Valeska Schulz)
Nachtkerze (frame do video de Valeska Schulz)
2) Num segundo “tempo” a lenda é interpretada e reconvertida em matéria performativa por Rui Aleixo. O artista recorre ao seu próprio corpo e a alguns objectos ligados a este – emitindo sons, explorando acções, expressões e funções e percorrendo o espaço cénico – e interpreta simultaneamente a matéria visual e musical (terceiro “tempo”), improvisando e seguindo directivas de reacção a estímulos externos – por si anteriormente estipuladas –, voltando sempre à teia estruturante da narrativa da lenda.
performance de Rui Aleixo
3) Num terceiro “tempo” quatro músicos interpretam a matéria visual e a matéria performativa reconvertendo-as em matéria musical. Rui Aleixo terá traçado uma série de códigos musicais que servirão de partitura virtual a estes intérpretes: serão dadas indicações para associar determinados gestos musicais ou tecidos harmónicos a elementos específicos das imagens projectadas – temperatura da cor, formas ou elementos, ritmos, densidade, personagens – e da performance – deslocação no espaço, expressão facial, atitude corporal –, que funcionarão como directrizes ou estrutura para a improvisação dos músicos.
performance musical (2 violinistas + 2 violoncelistas)
direcção musical e conceptual de Rui Aleixo
A interpretação musical do terceiro tempo sobrepõe-se à interpretação performativa do segundo tempo: uma forma nova, única e irrepetível de transmissão da lenda é a resultante deste cruzamento e funciona como banda sonora do primeiro tempo. O publico, por sua vez, pode escolher a forma concreta de assistir a esta performance, tendo a possibilidade de circular à volta do espaço – assistindo às projecções dos filmes ou das sombras – ou de espreitar para o interior do "pavilhão", tendo um contacto visual não filtrado com os performers.

Valeska Schulz idealizou este projecto. Nos seus trabalhos tem procurado captar a expressão do sentimento e da emoção em diferentes culturas, devolvendo-a como uma experiência sensorial que introduz o “desconhecido” – a artista, para além das artes plásticas, tem formação em música e é teóloga. Partindo das suas experiências e interesses multidisciplinares e vivenciais, propõe uma parceria criativa a Rui Aleixo, artista plástico e músico que conhece em Lisboa.

Rui Aleixo interessa-se igualmente pela experimentação, pela procura de novos diálogos e intersecções, sejam eles no domínio dos conceitos ou da sua materialização formal. Para além da diversidade de disciplinas artísticas exploradas por Rui Aleixo – pintura, escultura, desenho, instalação, performance, música, canto –, Valeska interessa-se pelo facto de, muito jovem, o artista ter vivido no Bangladesh, na Índia e numa comunidade monástica em França e, assim, ter aprofundado uma espiritualidade em contacto constante com outras culturas.

A lenda

Na China, a lenda de Zhu Yingtai e Liang Shanbo tem sido transmitida de geração em geração ao longo dos séculos e todas as crianças a conhecem. Esta história deu origem a filmes, músicas, encenações de ópera tradicional chinesa e teatros de sombra. Num concerto para violino de Chen Gang e He Zhanhao a história é contada pela música e pela orquestra sinfónica – foi através deste que Valeska Schulz conheceu a lenda:

Zhu Yingtai, a única rapariga de nove filhos, quer ir à escola. No entanto, essa sua vontade é-lhe interdita, por ser contrária aos costumes vigentes na sua sociedade. Não encontrando outra solução, Yingtai veste-se como um rapaz e consegue desta forma avançar com o seu propósito.
A caminho da escola ela conhece o jovem Liang Shanbo. Os dois tornam-se imediatamente grandes amigos e cúmplices, e fazem um pacto de sangue. Estudam juntos durante três anos e Zhu vai-se gradualmente apaixonando por Liang. Mais concentrado nos estudos, este não se apercebe que o corpo do seu “amigo” vai sofrendo pequenas alterações.
Um dia Zhu recebe uma carta do seu pai exigindo o seu regresso. Angustiada ela ainda tenta, em vão, revelar o seu segredo a Liang. Sem conseguir, acaba por convencê-lo a ir visitá-la para lhe apresentar a sua alegada “irmã”, com quem gostaria de o ver casado.
Passados alguns meses do seu regresso a casa, Liang vai visitá-la e descobre que Zhu é uma rapariga. Os dois estão tremendamente apaixonados e juram eterno amor. No entanto, a alegria deste reencontro é de curta duração: Zhu fora prometida em casamento a outro homem. Liang adoece de desgosto e morre.
No dia do casamento, Zhu vai de barco em direcção da casa do seu futuro marido. Quando o cortejo nupcial passa junto ao túmulo de Liang, desencadeia-se uma tempestade inesperada que os impossibilita de prosseguir. Zhu vai prestar uma última homenagem junto do túmulo e, em profundo desespero, roga que este se abra. Este abre-se repentinamente com um trovão e, sem qualquer hesitação, Zhu salta lá para dentro. As almas dos dois amantes transformam-se em duas borboletas que saem do túmulo a voar… e jamais serão separadas.